Ditadura Civil-Militar no Brasil e suas relações com o futebol

 Ditadura Civil-Militar no Brasil e suas relações com o futebol

Tenhamos ódio e nojo à ditadura

Crédito da Foto: Antônio Lucio / Estadão Conteúdo 

Durante as décadas de 1960 e 1970, o mundo presenciava um estado de tensão generalizada devido ao contexto político de enfrentamento entre duas superpotências, vivíamos a Guerra Fria. Esse conflito ficou marcado por não haver combate direto entre União Soviética e Estados Unidos da América, os atores que proporcionaram o confronto. Porém, especialmente este, teve papel fundamental para mudanças no cenário político do continente americano.

Como já publicado neste site na matéria “Como o futebol foi afetado pela ditadura pinochetista”, o futebol pode ser utilizado como arma política e de influência. E ditadores, e seus aspirantes, sabem muito bem como afetar um material de grande apelo popular para se perpetuar no cargo.

A ditadura no Brasil, assim como a chilena, foi liderada por alas militares que compartilharam particularidades curiosas no que diz respeito ao futebol. Um dos grandes casos da ditadura de Pinochet foi a utilização do Estádio Nacional como campo de repressão e prisão. Com um impacto muito menor e menos influente, no Brasil, o Estádio Caio Martins, em Niterói, no Rio de Janeiro, partilhou da mesma função durante os primeiros dias pós-golpe. O caso chileno contou com a passagem de mais de 40 mil presos políticos, enquanto no Caio Martins apenas 38 presos políticos foram enviados ao estádio.

Outro caso marcante no Chile foi o jogo, ou melhor, não-jogo que aconteceu entre Chile e URSS, em que a Seleção Soviética recusou-se a jogar contra o Chile. No Brasil, porém, foi a seleção latina quem impediu os soviéticos de participarem do torneio.

O caso aconteceu no mesmo ano do golpe, em que coincidia com a comemoração de 50 anos da Confederação Brasileira de Desportos, que preparou uma competição para festejar. A Taça das Nações era um torneio amistoso que inicialmente seria  disputado entre o Brasil – o anfitrião -, Argentina, Inglaterra e União Soviética. Porém, houvera grande pressão para a União Soviética ser tirada do torneio e o então presidente da confederação, João Havelange, aceitou as reivindicações e substituiu os soviéticos pela seleção portuguesa. Ao final do torneio, o Brasil acabou com o vice-campeonato e a Argentina sagrou-se campeã.

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Outro curioso caso presenciado neste contexto fora a cor do uniforme que a seleção utilizava durante seus treinos. Os brasileiros trajavam um uniforme de treino vermelho e, por pressão do governo formado pelos militares, João Havelange foi obrigado a trocar a roupagem dos jogadores para um com cores da bandeira nacional.

As relações da ditadura com o futebol começaram dessa maneira e intensificaram-se durante o regime, chegando até em trocas de treinadores na seleção e em convocações indicadas por generais que ocupavam o executivo do país.

E, mesmo com as várias tentativas de abafamento pelos militares, a resistência de diversos setores da sociedade perdurou até o fim do regime e, obviamente, o futebol teve relação intrínseca com a resistência.

Guerrilheiros e futebol

(Torcida Brigada Marighella homenageia guerrilheiro que também era rubro-negro / Foto: Matheus Soares/bahia.ba)

Durante o regime militar, os símbolos da seleção brasileira e a própria seleção foram apropriadas pelo governo como símbolo político e todo movimento em volta da copa de 1970 foi um dos maiores exemplos do ufanismo baseados no futebol. Devido a esse fato, militantes políticos da oposição encontraram-se em uma sinuca de bico: torcer pela seleção ou não?

Porém, relatos atestam que até mesmo os guerrilheiros da luta armada não se contiveram com a seleção do tri. O gaúcho Aldyr Garcia Schlee, autor da camisa verde e amarela da seleção, conta que foi convidado a assistir ao segundo jogo da seleção na Copa na casa de um amigo junto a três representantes da alta cúpula do Partido Comunista Brasileiro. O combinado feito pelos presentes era de que ninguém torceria pela canarinho.

O jogo foi complicado. A Inglaterra era a atual campeã do mundo e conseguia segurar a seleção brasileira. Aos 59 minutos de jogo, Jairzinho abre o placar e Osmar, integrante da luta armada, não se conteve. Segundo Schlee, em entrevista dada à Folha de São Paulo, “Quando Jair fez o gol, Osmar puxou o revólver e descarregou na rua. E gritou: ‘Puta merda, como é bom ser brasileiro’”.

Saindo do campo da paixão pelo futebol, que conseguiu anular até mesmo os ideais dos mais fervorosos opositores, o esporte e suas multidões tiveram outros papéis fundamentais para o desenrolar da política.

Em 1969, guerrilheiros realizaram o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick para conseguir a libertação de 15 presos políticos. Após exaustivas negociações, o governo militar cedeu aos guerrilheiros e os 15 prisioneiros foram soltos. Os idealizadores do sequestro cumpriram com sua palavra e soltaram o embaixador. Porém, era necessário soltar o embaixador em um ambiente que não fosse hostil e qual lugar seria melhor que um estádio de futebol?

No dia 7 de setembro de 1969, numa tarde de domingo, Fluminense e Cruzeiro jogavam no Maracanã com 30 mil de público presente. O jogo ficou 3 a 0 para o Zeiro com dois gols de Tostão e um gol de Dirceu Lopes. Na saída do estádio, os autodenominados revolucionários entregaram o embaixador e se dispersaram na multidão garantindo sua segurança.

Pouco tempo depois, no dia 4 de novembro de 1969, outro fato marcante para o desenvolvimento da ditadura aconteceu durante uma partida de futebol. Corinthians e Santos jogavam no Pacaembu, o jogo acabaria em 4 a 1 para o Corinthians com dois gols de Rivellino, porém, no intervalo, o locutor do Pacaembu anunciava: “Foi morto pela polícia o terrorista Carlos Marighella”.

Carlos Marighella foi um grande nome da oposição armada, sendo o mais influente deles e, por essa razão, foi taxado como inimigo número 1 da ditadura e classificado como terrorista pelos ditadores. O assassinato do guerrilheiro foi feito numa emboscada e, no livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, é dito que a execução ocorreu antes mesmo da bola rolar, porém, Fleury, delegado do DOI-CODI que executou Marighella, só liberou a área para acesso da imprensa após 90 minutos, o tempo necessário para forjar a morte de um civil que passava pelo local e o ferimento de dois policiais, com objetivo de justificar o assassinato de Marighella que estava desarmado.

João Sem Medo

(João Saldanha no primeiro plano com um militar o vigiando / Acervo Globo)

No mundo futebolístico, todos foram constantemente vigiados e é possível encontrar diversos relatórios sobre as ações e os posicionamentos de jogadores e de treinadores. E, devido às suas fortes declarações, um grande expoente do futebol foi perseguido pela ditadura, sendo ele, João Alves Jobim Saldanha, mais conhecido como João Saldanha. 

Saldanha foi um jornalista, militante político do Partido Comunista Brasileiro e treinador, que serviu à seleção brasileira de futebol como treinador de 1969 até 1970. Uma das teses defendidas é a de que a demissão de Saldanha foi uma manobra da ditadura para não fazer com que alguém da esquerda ganhasse ainda mais voz em território nacional. Portanto, três meses antes da Copa do Mundo de 1970 começar, Saldanha teve que se desligar do cargo de treinador. 

Durante o período de comando da seleção, Saldanha não deu um passo para trás em relação ao seu posicionamento político e, por causa disso, o regime tinha muitas considerações contra ele. Uma das acusações era de que Saldanha divulgava para o exterior informações sobre cidadãos torturados. Anos depois, João confirmou a acusação dizendo que um amigo influente lhe entregou uma lista de presos políticos, que Saldanha divulgou a diversos jornais estrangeiros como o Observer e o Le Monde.

Além desses fatos, outros antecederam a demissão de João Saldanha. Um caso marcante é o de pedidos de convocação feitos por Médici e não atendidos pelo treinador. Em dada ocasião, quando Médici pedia Dario na seleção, Saldanha respondeu o ditador de maneira inusitada: “Eu e o presidente temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, gremistas, gostamos de futebol, e nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala o time”.

A amarelinha

(Carlos Alberto Torres, o Capita, junto com Médici, presidente durante os anos de 1969-1974 / Fonte)

Os amantes da bola no Brasil estavam passando por sensações únicas e inéditas até então. A seleção havia vencido, no ano de 1958, a sua primeira Copa do Mundo e, em 1962, a sua segunda, portanto o brasileiro nunca esteve tão envolvido com o futebol nacional, e os militares não poderiam perder a chance de manipular o povo através da seleção brasileira, ou de deixar pessoas de dentro da seleção fazer com que a população se voltasse contra a ditadura.

No documentário “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor – Brasil” é possível ver a primeira interferência sutil do governo com a seleção, com uma visita tendenciosa dos jogadores e dos diretores da Confederação Brasileira de Desportos ao Palácio Laranjeiras pouco antes da primeira Copa do Mundo de 1966. Tal cenário assemelha-se muito ao que viria acontecer 8 anos depois no Chile, porém, desta vez, nenhum membro do esporte teve a corajosa ação de Caszely de se negar a cumprimentar o chefe do executivo. 

No entanto, a Copa de 1966 conseguiu ser um fiasco desde a preparação até a eliminação precoce. A preparação foi extremamente criticada por pesquisadores do mundo futebolístico: montar vários times e dar diferentes itinerários para eles. Tal preparação foi montada pelo órgão do futebol e pelos ditadores, os quais escolheram cidades específicas para fazer os amistosos como maneira de propaganda política, e como esperado, a atuação na Inglaterra foi pífia e a seleção foi eliminada ainda na primeira fase. 

Após o afastamento de João Saldanha, quem assumiu o cargo foi um ex-jogador e ídolo da seleção, Mário Jorge Lobo Zagallo, conhecido como Zagallo. Seu início como treinador da Seleção não iniciou pela sua capacidade e inteligência, que sempre foram muito evidentes, mas por Zagallo treinar a equipe do Botafogo na escola de educação física do exército, como é relatado no documentário “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” por um dos militares que foram contatar o treinador Zagallo. Grande parte da comissão técnica de 1970 era composta por militares e até mesmo o chefe da delegação estava nas mãos de um brigadeiro, que levou junto a ele um torturador para dentro da seleção brasileira, para servir como um agente da repressão.

 Já na Copa de 1970, Saldanha foi contratado como jornalista pela rede BBC e o regime ditatorial não o deixou acompanhar a seleção brasileira. No ritmo de “Pra frente Brasil”, canção de Miguel Gustavo, que foi feita para a seleção e impulsionada pelo governo, uma campanha arrebatadora brasileira aconteceu e rendeu mais um título mundial. O tricampeonato ocorreu em um momento oportuno para o governo, pois com a chegada da televisão o povo pôde acompanhar uma conquista com um belo futebol, e assim, acender o sentimento nacionalista do povo brasileiro. 

Paralelamente aos brilhos da seleção de Pelé, o Brasil passava pelo momento de auges da ditadura, seja na repressão ou na economia. E, claro, neste momento os jogadores passaram a ser ainda mais vigiados, fazendo com que alguns tenham, até mesmo, se curvado ao regime, esse é o caso de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, que em documento deixou claro a sua disponibilidade em ajudar caso assim fosse necessário. No documentário “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor – Brasil” é possível ver tal posição de Pelé.

A presença militar no alto comando da seleção não se limitou à Copa de 70. Ainda em 1968, toda preparação física já era liderada por militares, sendo Admildo Chirol o principal nome da preparação física. Junto com Chirol, Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira integraram a seleção e perduraram por muito mais tempo. Coutinho treinou a seleção para a Copa de 78 e Parreira treinou a seleção nas Copas de 1994 e 2006.

Fiel à democracia

(Doutor Sócrates com camisa em alusão às eleições / Fonte)

Apesar das diversas tentativas de repressão, a torcida e os jogadores do Sport Club Corinthians Paulista formavam resistência. Dentro do Corinthians havia uma insatisfação devido a centralização e ao engessamento proporcionados pelos dirigentes do clube. Os presidentes, desde a década de 1940, estendiam seus cargos e não possibilitavam o nascimento de uma oposição clara dentro no clube. 

E nesse cenário de centralização do poder na mão de poucos, seja no clube ou em espectro nacional, na década de 1980, surge a “Democracia Corinthiana”, nome dado pelo jornalista Juca Kfouri. Tal movimento de resistência estava em um clube de grande massa popular, sendo a de segunda maior concentração no país. Uma pesquisa divulgada pela revista “Placar” no dia 13 de junho de 1983, ano que coincidia com o desenvolvimento da Democracia Corintiana, conclui que 31% da população brasileira torcia para o Clube de Regatas do Flamengo, enquanto 17% torcia para o Sport Club Corinthians Paulista. Dois grandes nomes do clube iniciaram o movimento, sendo eles, Adilson Monteiro Alves e Waldemar Pires, um diretor de futebol e um presidente do clube, respectivamente.

Adilson, um estudante de sociologia com ideais de esquerda, encontra um parceiro perfeito dentro do clube, o jogador Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, conhecido como Sócrates, ou Doutor Sócrates, devido a sua formação em medicina. E, dentro do elenco, outros jogadores com ideais revolucionários formaram o primeiro corpo da Democracia, como Walter Casagrande Júnior, o Casagrande, e Wladimir Rodrigues dos Santos, o Wladimir, e aos poucos mais jogadores juntaram-se ao movimento.

Adilson, no documentário “Democracia Corinthiana”, diz que o movimento inicia em um hotel em que o clube estava hospedado. Ao chegar lá ele profere palavras referindo-se à uma liberdade controlada que os jogadores viviam, ou seja, estava claro a sua ideia de democratização no futebol e de melhor divisão de responsabilidades. O primeiro ato da Democracia Corinthiana foi dentro do clube. Fazer com que a chamada concentração, momento em que os jogadores se reúnem e são postos em um cenário a prepará-los para o jogo seguinte, fosse facultativa. A partir dessa ação, o elenco conquistou mais confiança e vitórias e, assim, a torcida aderiu com maior afinco ao movimento.

Finalmente, no ano de 1982, é aprovada a estampa da camisa com a marca da Democracia Corinthiana na camisa, porém o governo não esperava que com isso viriam também mensagens políticas em âmbito nacional, não só no clube. Em uma reunião do clube, os dirigentes decidiam o que fazer com o espaço destinado ao patrocínio que, naquele momento, estava vago. Ao final, optaram por uma frase polêmica em meio a ditadura: “Dia 15 vote”, pois no dia 15 de novembro de 1982 o voto democrático para governador seria respeitado pela primeira vez em 18 anos. 

A equipe nas “Diretas já” teve também participação decisiva, Sócrates, que já estava negociado com a Fiorentina, disse que se o movimento das diretas fosse aprovado ele não sairia do país, mas, infelizmente ele saiu, pois o movimento não teve êxito. No entanto, poucos anos depois as eleições para presidente, ainda que de forma indireta, ocorreu, marcando o fim de uma violenta ditadura no Brasil e, ao mesmo tempo, o movimento da Democracia Corintiana estava sendo desfeita, pois a oposição dentro do Sport Club Corinthians Paulista foi eleita e desmanchou todo o movimento.  

A segunda Guerra dos Farrapos

(Seleção Gaúcha em jogo contra a Seleção Brasileira em 1972 / Fonte: Agência RBS)

O cenário sul-rio-grandense sempre foi essencial na construção da política brasileira. Desde o período do império com os farrapos, até os grandes nomes da política nascidos no estado mais austrino do país como Getúlio Vargas, Leonel Brizola e João Goulart.

João Goulart, o Jango, foi o último presidente civil antes dos generais tomarem o poder do país no golpe de 1964. Gaúcho e colorado, tinha uma forte relação com o Internacional, chegando a jogar e a conquistar títulos pelas categorias de base do Inter nos anos 30. O ex-atleta de base, enquanto presidente, tentou até mesmo frear as vendas de jogadores brasileiros para o estrangeiro.

No ano de 1976, Jango, exilado em território argentino, que também vivia em regime ditatorial desde o início daquele mesmo ano, falece devido a um ataque cardíaco. Inicialmente, a morte foi vista de modo natural, porém, anos depois, a suspeita de envenenamento foi declarada, culminando com exumação do corpo em 2011.

Logo após o falecimento, o Colorado organizou uma homenagem para Jango. O minuto de silêncio, porém, foi abafado pela repressão da polícia do governo que impediu o momento de luto. Em 2013, em um jogo contra a Ponte Preta, o Inter fez questão de relembrar o fato e o minuto de silêncio por Jango foi realizado 37 anos após sua morte.

Outra revolta guasca foi construída em torno de um tricampeão mundial. E, desta vez, o motim baseou-se mais no orgulho gaúcho que em um movimento anti-ditatorial.

O ano de 1972 marcou os 150 anos da independência brasileira. Para a comemoração, a CBD organizou a Taça Independência. A competição ocorreu 2 anos após a conquista do tricampeonato e Zagallo, técnico da seleção, não realizou a mesma convocação que havia realizado 2 anos antes. Uma das figurinhas não presente nesta convocação foi Everaldo, lateral-esquerdo do Grêmio e titular absoluto da seleção em 1970, não disputando apenas as quartas de final contra o Peru.

A não convocação teve resposta imediata por parte dos gaúchos. A população gaudéria não ficou nada contente e o presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), Rubens Hoffmeister, acabou voltando-se contra a Seleção Brasileira e montou um combinado entre jogadores de Grêmio e Inter para desafiar a seleção nacional.

E, no dia 17 de junho de 1972, a FGF e a CBD realizaram o segundo tempo da Revolução Farroupilha, desta vez no Beira-Rio, o maior estádio do Rio Grande do Sul até então. Mais de 100 mil gaúchos voltaram-se contra o norte do país, vaiando incessantemente a seleção do Brasil.

O jogo entre Seleção Gaúcha e Seleção Brasileira terminou em 3 a 3, com gols de Tovar, Carbone e Claudiomiro pelo lado gaúcho e Jairzinho, Paulo Cezar Caju e Rivellino pelo lado brasileiro. Esse fato fez com que os gaúchos fossem muito criticados pela falta de patriotismo, porém foi muito importante por constituir um dos raros momentos de união da dupla Gre-Nal, além de fortalecer os ideais da oposição, visto que os militares tentavam divulgar um país de Poliana, que tinha a seleção como importante representante. 

Garrincha, Afonsinho, Reinaldo e Nando: como nossos atletas se posicionaram?

Os jogadores de futebol são ídolos. Sua capacidade de influência é inegável. No decorrer dos anos de ditadura, diversos jogadores declararam seu posicionamento. Os que foram a favor do regime demonstraram seu apoio de maneira velada ou com o tempo ganharam uma descrença sobre os militares. Já os opositores ao governo tomaram posições mais fervorosas e marcantes durante os anos de ditadura.

Sócrates foi integrante importante da Democracia Corintiana, sendo lembrado como símbolo dos opositores. Tostão divulgou sua indignação contra o sistema pouco antes de certa convocação e quase foi cortado por este motivo. Pelé, inicialmente, se colocou à disposição do regime, porém, com o passar dos anos, mudou de posição.

Já no ano de 1974, com 34 anos, o Rei do futebol ouviu súplicas da filha do Geisel para ir para a Copa do Mundo, porém, segundo Pelé, o Rei decidiu não ir por estar insatisfeito com a ditadura em seu país. Apesar disso, dois anos antes, Pelé havia dado uma entrevista negando a existência de uma ditadura no Brasil.

Além desses casos, outros foram marcantes no mundo do futebol, como o caso de Garrincha, que sofreu atentados promovidos pelo governo; Afonsinho, que lutou por mais direitos aos jogadores; Reinaldo, que se manifestou em diversos momentos; E Nando, que foi taxado como subversivo pelos ditadores.

Garrincha

(Garrincha e Elza Soares, ambos foram afetados pela ditadura / foto: LANCE!)

Garrincha, um dos maiores nomes da história do futebol, teve sua casa invadida por pessoas que se diziam membros do DOPS e depois metralhada a mando do governo.

A ligação do Anjo das Pernas Tortas com a política tem seus primeiros passos na eleição de 1960, a última democrática antes do golpe de 1964. Na ocasião, Garrincha declarou apoio a João Goulart, participando de comícios e divulgando seu jingle, que foi gravado por Elza Soares, que seria sua companheira pouco tempo depois.

Após o golpe de 1964, qualquer um que pudesse representar uma oposição ao regime era perseguido e, devido ao posicionamento anteriormente explanado e ao forte posicionamento de Elza Soares, Garrincha e Elza foram duramente reprimidos pela ditadura.

Na noite de 20 de junho de 1964, a casa do bicampeão mundial foi invadida por 10 homens que se identificavam como agentes do DOPS. Durante a invasão, os repressores fizeram com que Garrincha, sua mãe, Elza e três filhos ficassem nus virados para a parede. Toda a casa foi investigada pelos invasores. Mesmo não dizendo diretamente aos donos da casa, Elza, anos depois, disse que ouviu algo sobre Jango, ficando claro o motivo político da invasão.

Os agentes da ditadura nada encontraram. Porém, antes de se retirarem, mataram um mainá, pássaro que Garrincha ganhou de presente de Carlos Lacerda, governador da Guanabara. Dois dias depois, os noticiários divulgaram que bandidos invadiram a casa de Garrincha enquanto ele e sua família dormiam.

O último caso direto dos agentes da ditadura contra o bicampeão foi fundamental para os diversos problemas que o craque enfrentou até o final de sua vida.

Anos após a invasão, em 1969, a casa do casal foi metralhada e os dois foram obrigados a deixar o país em 24 horas. Elza conta que estava na rua e entrou em casa com seus filhos. De repente ouviu um barulho de tiroteio muito alto, quando percebeu, sua casa estava sendo metralhada. Diz ainda que seu piano, que ficava na sala, foi aberto ao meio devido aos tiros.

Muitas dessas repressões aconteciam pois Elza atuava com artistas que eram identificados como expoentes da esquerda, como Geraldo Vandré. Com o atentado, o casal se viu obrigado a se mudar para Itália. Garrincha não conseguiu lidar com o exílio forçado e, consequente, ausência de propostas de emprego, o que fez com que seu problema com alcoolismo fosse ampliado.

No dia 20 de janeiro de 1983, Garrincha morreu pobre e marginalizado em decorrência das ações do governo militar.

Afonsinho

 (Afonsinho, importante nome do Botafogo na década de 1960)

Afonsinho foi um jogador que marcou época no futebol e até hoje é muito lembrado pela sua luta pelo Passe Livre, que possibilitou a autonomia dos jogadores e um desvínculo mais fácil com as obrigatoriedades que eram impostas pelos clubes contra os atletas. Muito graças a Afonsinho que hoje os atletas se veem livres para negociar e adquirir maiores direitos no exercício da profissão.

Porém, as lutas de Afonsinho foram além dos direitos trabalhistas. Afetaram, também, os direitos sociais. O jogador, que conciliava seus estudos com o esporte, tinha longos cabelos e uma barba grande, na época, já sendo suficiente para ser chamado de “comunista” e de “subversivo” pelos defensores do regime.

Devido a essas características e a fazer parte do movimento estudantil, o Botafogo, a mando do técnico Zagallo, decidiu por cortar vínculos com o atleta, tomando a posição que seria mais conveniente para não ter problemas com a ditadura. Desde então, Afonsinho passou por diversos clubes e não conseguiu se firmar em nenhum, apesar de ser um jogador de qualidade ímpar.

Reinaldo

(Reinaldo fazendo sua comemoração em alusão aos Panteras Negras)

Reinaldo, um dos maiores ídolos da história do Atlético Mineiro, tomou as demonstrações públicas como maneira de mostrar resistência contra a ditadura militar. Suas comemorações, dos tantos gols que marcou, foram os momentos perfeitos para marcar oposição.

Reinaldo inspirado pelo movimento dos Panteras Negras americanos e pelos atletas John Carlos e Tommie Smith, que marcaram as olimpíadas de 1968 com manifestações antirracistas, comemorava os gols com o punho em riste. E por esse motivo, sua convocação para a Copa de 1978 foi muito contestada.

No ano de 1978, a Argentina passava por uma sangrenta ditadura e o mundo se preparava para disputar a Copa no país de Kempes e Passarella. O ano anterior, no Brasil, foi marcado pelo título do São Paulo no Campeonato Brasileiro e pela vice-colocação do Atlético Mineiro. Reinaldo, de apenas 20 anos, foi um dos principais nomes do Atlético na campanha ao lado de Toninho Cerezo, porém, seu nome era pouco cotado para ir à seleção.

Rapidamente, a população relacionou a falta da predileção de sua convocação ao fato do craque ter opiniões políticas divergentes ao governo até então presente. Sendo assim, o movimento estudantil de Belo Horizonte se revoltou por Reinaldo e pintou no muro da Universidade Católica de Minas Gerais a frase “Por que Reinaldo não pode ter opinião política?”. Junto a isso, manifestações na Praça Sete de Setembro foram realizadas e a imprensa, concomitante ao presidente do Galo, pediam Reinaldo na seleção.

Mesmo que a contragosto do regime, Reinaldo acabou sendo convocado pela pressão popular. Logo em seus primeiros encontros como selecionado, Geisel foi ao encontro dos convocados e se dirigiu diretamente a Reinaldo, dizendo: “Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz”. Porém, a juventude de Reinaldo não o permitiu ficar calado.

A estreia da seleção foi contra a Suécia. Os suecos começaram abrindo o placar e, aos 45 minutos do primeiro tempo, Reinaldo marcou o gol de empate. No momento de euforia, Reinaldo rapidamente pôs o punho em riste, como era o seu habitual, porém, logo percebeu seu “erro” e, de maneira a tentar consertar, levantou o outro braço.

Após o empate, já no hotel, Reinaldo recebeu uma carta anônima vinda da Venezuela. Na carta havia informações sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Logo notou que seu pescoço poderia estar no radar da Operação Condor, aliança das ditaduras americanas para perseguir seus opositores.

Pouco a pouco, Reinaldo foi perdendo espaço na seleção e já não era mais visto com bons olhos pela comissão técnica, que o tirou do time titular. Segundo Reinaldo, seu afastamento foi proporcionado pelo governo, já que o almirante Heleno Nunes cobrou publicamente que fossem feitas alterações no time titular. Mesmo estando em ótima fase, Reinaldo não foi convocado para a Copa de 82. 

Nando

(Família Antunes Coimbra reunida. Nando, ao lado esquerdo de Zico, foi diretamente afetado pela ditadura)

Fernando Antunes Coimbra, o  Nando, nasceu em uma família de craques como Edu e Zico, seus irmãos. Inevitavelmente, buscou carreira no futebol, porém, logo percebeu que uma de suas grandes vocações era no magistério.

Em janeiro de 1964, João Goulart implementou o PNA (Plano Nacional de Alfabetização) voltado para adultos, desenvolvido pelo educador Paulo Freire. Nando, sua irmã e sua prima candidataram-se para ministrarem aulas e Nando passou no concurso ao mesmo tempo que cursava Filosofia na Faculdade Nacional.

Com o golpe, os militares classificaram Paulo Freire como subversivo e seu Plano foi extinto e os educadores concursados foram demitidos e passaram a ser vigiados de perto.

Nando, que já dava seus primeiros passos no futebol, largou a ideia de ser educador e continuou sua carreira de futebol. Porém, os militares não largaram ele e, muito menos, seus familiares.

A carreira de Nando foi rapidamente afetada devido ao regime militar. Ele era atleta do Santos do Espírito Santo e teve um bom início, porém a comissão técnica foi alterada e militares passaram a ocupar altos cargos dentro do clube. Rapidamente Nando foi afastado pelo técnico, que era um oficial do exército que conhecia o jogador.

Logo após, foi jogar no América do Rio de Janeiro e depois no Madureira. O motivo de sua saída do Madureira até hoje não é muito clara. Carlinho Maracanã o afastou sem explicações. Vendo sua situação, Nando decidiu mudar de estado e foi jogar no Ceará. Com as boas atuações, no ano de 1968, Fernando recebeu uma proposta irrecusável do Belenenses, clube de Portugal.

Chegando em Portugal, seu pesadelo aumentou. O país vivia a ditadura fascista salazarista, que tinha alianças com a ditadura brasileira. O Belenenses não cumpriu com o combinado e pagou menos da metade do que foi acordado, o que fez com que Nando recusasse a assinar o contrato.

Dias após chegar em Portugal, dois agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado encontraram Nando em um hotel. Pediram seus documentos e avisaram a ele que tinham conhecimento do PNA. No dia seguinte, foi ameaçado outra vez, e, desta vez, a ameaça saiu de dentro do Belenenses.

Um diretor do Belenenses ameaçou Nando dizendo que era obrigado a assinar o contrato, caso contrário, por ser filho de português, poderia ser obrigado a fazer parte do exército português e ir para a África lutar, já que Portugal passava por um momento de guerra contra suas colônias, as quais tentavam se separar do país europeu.

Essa ameaça foi a última que Nando suportou. Logo conseguiu ajuda e retornou ao Brasil. Deixou o futebol de lado por medo. Manteve-se calado para não atrapalhar a carreira de Edu, que havia sido artilheiro do campeonato nacional jogando pelo América, e a de Zico, que já era destaque do futebol de base do Flamengo.

Em dado dia, uma prima de Nando, Cecília, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, e seu marido foram pegos pelo DOPS. Nando e um outro primo rapidamente foram à casa de sua tia para ajudá-la, uma vez que a mesma começou a passar mal ao saber da notícia. Na visita, agentes da ditadura algemaram Nando e seu primo e os levaram de camburão para o DOI-Codi.

Após mais de 48 horas com o rosto virado para a parede e as mãos na cabeça, Nando e seu primo foram liberados, Cecília, porém, foi duramente torturada por meses a fio. No retorno para casa, Zico conta que Nando “[…] Estava totalmente desfigurado. Ninguém reconhecia ele”.

Após o caso, Nando tentou voltar a jogar, chegando a atuar pelo Gil Vicente, de Portugal. Porém, devido a repetidas lesões encerrou a carreira precocemente.

Ao final da ditadura, com a promulgação da Carta Magna de 1988, Fernando Antunes Coimbra teve seu cargo de professor no ensino público devolvido e, em 2010, recebeu a anistia pelo Ministério da Justiça, sendo reconhecido como o primeiro caso de um jogador de futebol anistiado na história do Brasil.

Tancredo e Maluf em clima de Fla-Flu 

(Torcida do Flamengo declarando oposição a Paulo Maluf. Foto: Agência O Globo)

Nos finalmentes da ditadura, em 1984, Tancredo e Maluf faziam as manchetes políticas e um dos dois seria escolhido pelo colégio eleitoral, no início de 1985, de forma indireta, para presidir o país novamente democrático. O clima entre os dois candidatos era de Fla-Flu. Enquanto Tancredo Neves, do PMDB, era uma figura que poderia representar uma real mudança no país, Maluf, do PDS, representava uma continuidade do regime, visto o seu passado político na ARENA, nomeada de PDS após extinção do bipartidarismo, e apoio do último presidente no período ditatorial, João Figueiredo.

General Figueiredo era torcedor declarado do tricolor gaúcho e carioca e, por esse motivo, deu a Nazareno Barbosa Tavares, um médico que o salvou de um infarto, um cargo como preparador físico no Fluminense. Sendo assim, Nazareno recebeu a tarefa de influenciar os jogadores de dentro do clube a apoiarem o Maluf, dizendo, principalmente, que o candidato do PDS criaria o Ministério dos Esportes.

Nazareno foi efetivo.

Na semana anterior à decisão da Taça Guanabara de 1984, marcada por um Fla-Flu, Nazareno organizou uma visita do elenco tricolor a Maluf, em Brasília. Nomes como Washington, Branco, Aldo e Jandir foram até Brasília mostrar apoio a Maluf. O goleiro Paulo Vitor não pôde ir até a capital, porém, no dia anterior à final, foi até a sede da TV Manchete para tirar uma foto abraçado com o candidato. Apesar do apoio de vários jogadores tricolores, Romerito e Delei não foram com a maioria e marcaram oposição à Maluf.

Chegando no dia 23 de setembro, a final da Taça Guanabara teve um Fla-Flu em torno de questões políticas. Enquanto boa parte do elenco tricolor construiu ligações com Maluf, as torcidas de Flamengo e Fluminense fizeram questão de mostrar apoio a Tancredo Neves.

As manifestações vindo da arquibancada tinham o mesmo tom. Do lado tricolor uma faixa com os dizeres “Maluf é corrupção, Tancredo é a solução” foi erguida. Já no lado rubro-Negro a provocação ao rival e ao candidato do PDS vieram com as faixas “Muda Brasil, Tancredo já” e “O Fla não Malufa”.

Antes da partida começar, ainda no vestiário, Zagallo, técnico do Flamengo, disse aos jogadores: “Vamos dar uma tancredada neles!”. E, referenciando o que aconteceria no ano seguinte, o Flamengo não malufou e saiu campeão com um gol de Adílio. A capa da revista Placar do dia seguinte tinha o título de “A tancredada do Fla”.

A ditadura militar chega ao fim com a eleição de Tancredo Neves em 15 de janeiro de 1985. O seu falecimento o impediu de exercer o cargo e José Sarney foi o primeiro presidente do país redemocratizado.

O processo que marca o fim desse triste episódio em nossa história acontece no dia 5 de outubro de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal. Ulysses Guimarães foi presidente da Assembleia Constituinte e teve a oportunidade de eternizar o momento com um discurso marcante que finalizou o processo de redemocratização.

“[…]A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.

Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. […]”.

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Matheus Bastos Gabriel

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