A legislação do futebol, a SAF e o solo

 A legislação do futebol, a SAF e o solo

A lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) está inserida na legislação do futebol. Até aí tudo normal. Mas o que o solo tem a ver com isso? Vamos ver se você concorda comigo

 

Para entender o contexto, há de se recorrer, mesmo que superficialmente, a tudo o que já se formulou de lei para o futebol. Desde o primeiro decreto, nos anos de 1930, até a promulgação da SAF, muita construção jurídica.

Quero aqui me ater àquelas que vieram após a promulgação da Lei 9615/98, que foi o período em que o clube, sem o total domínio sobre seu maior produto, o jogador, sua muleta financeira, passou a reclamar da falta de recursos.

Essa reclamação encontra eco em todas as camadas sociais e políticas. Tudo e todos consideram que o clube foi prejudicado naquela mudança; que o jogador deixou de ser seu produto para ser produto do intermediário, como se essa figura não fosse criada dentro do próprio clube. Mas essa é uma discussão para outra hora.

TIMEMANIA – 2006

Nesse compasso de reclamações, os torcedores e dirigentes que atuavam como políticos nos Poderes Executivos e Legislativo elaboraram e aprovaram um mecanismo de auxílio aos clubes. Desta forma, em 14 de setembro de 2006, surge a Timemania através da Lei 11.345.

A pretensão defendida para a criação dessa lei pode ser demonstrada em uma rápida pesquisa na internet: “A Timemania foi criada para ajudar os clubes participantes a pagarem as suas dívidas com o governo brasileiro. Do total arrecadado, os clubes recebem 22%, que são destinados ao pagamento de dívidas com o INSS, FGTS, Receita Federal e outros impostos devidos à União”[1].

Pois bem. A Timemania foi constituída para minimizar as dívidas dos clubes com o governo, mas, ao contrário disso, a dívida continuou aumentando.

PROFUT – 2015

Depois, em 2015, surge o PROFUT, outra lei (13.155) novamente elaborada e aprovada pelos torcedores e dirigentes infiltrados nos Poderes Legislativo e Executivo. Mais uma vez com o intuito de ajudar os clubes a resolverem suas dívidas com o governo, mas com um pouco mais.

Essa lei se propunha a um Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro para melhorar a gestão financeira dos clubes brasileiros. Bonita a proposta, não é? Modernização da Gestão e de, pasmem, Responsabilidade Fiscal do Futebol.

Se a Timemania se propunha a criar formas de arrecadação para auxiliar os clubes a pagarem suas dívidas com o governo, o Profut criou possibilidade de um parcelamento em até 180 vezes, ou seja, quinze anos, ainda com redução de 60% das multas, 25% dos juros e 100% dos encargos.

Aí você perguntaria: que dívida é essa com o governo que não para de crescer? Ela é referente, em parte, às obrigações que os clubes têm em repassar os valores que já foram descontados do trabalhador, a obrigação com a previdência social, por exemplo. Percebeu? Já foram descontados do trabalhador, não é do clube, ainda assim eles acabam não fazendo o repasse.

Antes disso tudo, em 2003, que até então não era uma lei, mas uma engenharia jurídica distorcidamente elaborada, criou-se outra muleta para os clubes: o Regime Centralizado de Execuções. Uma aberração jurídica criada no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, que depois se espalhou pelo país e que, em 2015, na mesma esteira do Profut, foi guindada a lei.

O RCE criou mais uma possibilidade de os clubes continuarem com suas irresponsabilidades.

O primeiro beneficiado com essa criação foi o Botafogo – RJ, fato que vem demonstrar a total ineficácia deste instrumento porque nos dezessete anos após o surgimento do RCE, sua dívida aumentou estratosfericamente chegando na casa de um bilhão de reais. O Botafogo não ficou sozinho nisso, como sabemos. Muitos cubes ficaram com “inveja” e vieram a se juntar no quesito dívida bilionária, ou quase.

SAF – 2021

A mais nova na questão é a criação da Sociedade Anônima do Futebol – SAF, Lei nº 14.193 de 06 de agosto de 2021.
A nova lei surge para dispor sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico. Não dá para não dizer que a proposta é bonita.

De uma forma mais simples podemos dizer que a SAF é a possibilidade de conversão de uma instituição desportiva sem fins lucrativos em uma “empresa” que visa lucro. O bom nessa conversão é que, em termos gerais, quem visa lucro se responsabiliza pessoalmente pela gestão, coisa de quase impossibilidade quando o tema é clube de futebol ou instituição desportiva.

Mas, assim como todas as outras leis do futebol, a SAF nasce para ser uma nova muleta para vários clubes quanto às suas (des)obrigações porque ela cria uma conversão de uma instituição extremamente endividada para uma outra instituição que nasce sem dívidas. As dívidas continuam pertencendo ao clube (associação). A lei diz que 20% da receita do clube-empresa e 50% dos lucros e dividendos, caso tenha, devam ser destinados ao clube (associação) para pagar as dívidas. Em caso de conversão, e isso pode acontecer em até dez anos.

E o pior é que aí que entram os torcedores infiltrados no outro Poder da República, o Judiciário. Essesinfiltrados, difícil saber em qual Poder estão os mais astutos,passaram a aceitar o parcelamento dos clubes desse período de dez anos mesmo que o clube ainda não tenha se convertido e assumido minimante as responsabilidades por essa conversão.

Uma pausa antes de seguirmos.

Se você acha isso tudo o que eu estou escrevendo um absurdo, certamente é porque você nunca passou pela situação de ter trabalhado, não ter recebido seu salário e não poder sequer questionar (executar) o seu devedor, enquanto ele utiliza os recursos financeiros que consegue para assumir novos compromissos ao invés de te pagar.

Nesse momento gosto muito de lembrar o filósofo Arthur Schopenhauer quando diz que “a única alegria do rebanho é quando o lobo come a ovelha do lado”.

No futebol, devido às várias circunstâncias em que a principal se coloca como a paixão clubística, muitas vezes acrescentada de interesses pessoais, não se respeita a “dor” e muito memos o direito do outro. Que se dane a ovelha do lado, tudo o que eu quero é me manter alegre.

Embora não seja explícito é assim que acontece.

O meu clube do coração pode dever para todo mundo, desrespeitar qualquer compromisso com terceiros se for para satisfazer a minha alegria, e para isso até concedo a graça, apoio incondicionalmente a possibilidade de continuar aumentando sua dívida, porque nada mais importa. A única dívida que eu não perdoo e até posso cobrar desmedidamente, porque é plenamente é aceitável nessa condição, é com a satisfação da minha paixão, o meu time tem que ganhar o campeonato de qualquer jeito.

O neurocientista Pedro Calabrez é de uma corrente de pensadores que defende que a paixão é um instante momentâneo de demência, isso quando se refere ao sentimento numa relação amorosa. Se considerarmos a paixão clubística, poderíamos entendê-la como uma demência perene? Serve para pensar.

Agora é que quero trazer o solo para essa reflexão. Solo que se apresenta na analogia pretendida como a mentalidade reinante.
No futebol a mentalidade é o do descumprimento, desrespeito as obrigações assumidas de forma livre.

Clube deve salários para jogador, deve para outro clube, deve para o governo, deve para fornecedor, deve para prestador de serviços, deve para agentes…

O clube pode dever geral e ainda encontra quem justifique essa condição no fato de buscar ser campeão.

Os clubes não querem e não têm quem os façam cumprir com todas as suas obrigações. O pior disso tudo é a cegueira, para ficarmos na melhor das hipóteses, de achar que a conta não chegará e que não haverá perdas significativas de recursos humanos.

Alguns fatos.

Tem dirigente que defende com muito afinco a permanência do artigo 31 da Lei 9615, que lhe dá a possibilidade de atrasar em até três meses o pagamento de salários.

Para que se tenha ideia da situação, numa das vezes que fui convidado a participar de audiência pública para discutir possíveis mudanças na lei, defendi a extinção desse artigo com a justificativa que, além de ser extremamente cruel com o jogador, levaria o clube a ter mais cuidado na hora da contratação, ou seja, obrigaria o clube a ser responsável com suas finanças. Assim que terminei e me dirigi ao meu lugar na assistência fui abordado pelo Rogerio Marinho, então deputado federal, hoje integrante do governo e dirigente do ABC de Natal, que me afirmou de forma enérgica: “se não puder atrasar salário não dá pra fazer futebol”. Marinho, ao expor sua posição, expôs aquela que é mais do que conhecida no meio futebolístico.

O dirigente quer prender o jogador com cláusula de rescisão milionária, mas não quer assumir a conta quando é ele que rompe com o jogador.

O trabalho que desenvolvo tem o foco na melhoria do futebol. Isso mesmo, do futebol, porque a defesa que faço se baseia em melhorar a gestão financeira como um todo. Nessa condição tudo melhora. Os clubes potencializam os recursos humanos, e ao valorizá-los, terá mais segurança na obtenção de mais recursos financeiros. Vários estudos sociais mostram que o ser humano somente vai trocar de lugar quando está insatisfeito com ela por algum motivo. A melhoria na gestão facilita muito a retenção de recursos humanos e financeiros.

Nesse trabalho e com base em um artigo conseguido na Lei que promulgou o Profut – aquela que deu ao clube a possibilidade de parcelamento de 15 anos com suas dívidas com o governo, o Sindicato de Atletas SP ajuizou ações contra a CBF e Federação Paulista para que elas cumprissem com a obrigação de exigir comprovante de pagamentos de salários e direito de imagem dos clubes para poderem disputar o campeonato do ano seguinte. Vejam, pagamento de salários e direito de imagem que os clubes assumiram livremente no ato da contratação. E o que fizeram os clubes se aliando com a CBF?

Entraram com uma ação no STF para anular o artigo da lei. Aquele órgão, desrespeitando toda a sistêmica constitucional, acatou o pedido em uma decisão absurda, e os clubes se livraram do compromisso hercúleo de pagar salários em dia. Essa questão jurídica, que é mais específica, eu discutirei em um outro momento.

Lembrando que os clubes que eram considerados grandes somente conseguem resultados esportivos quando estão escorados em uma estrutura totalmente deslocada da sua realidade financeira. Esses clubes são sustentados por mecenas que põem recurso extra, muito além da possibilidade de arrecadação do clube, que ficam refém dessas pessoas porque em qualquer momento elas podem mudar de ideia, e quando acontece o prejuízo, não acompanha o desertor, fica para o clube.

Nessa mentalidade nada o que se faça vai melhorar o estado das coisas, o solo é infértil. Nada que se semeie germinará, ou seja, por mais que os torcedores infiltrados nos Poderes da República tentem, nada se transformará para melhor.

Quanto ao solo, vi que há duas maneiras de recuperá-lo: de forma orgânica ou artificial. A orgânica depende de ingredientes caseiros, a artificial já vem preparada com características necessárias para servir a plantação.

Na mentalidade do futebol não há como recuperá-la de forma orgânica, porque os ingredientes caseiros são muito contaminados. A saída, então, seria a artificial, a intervenção de fora para dentro, só que desta forma também há pouca esperança, porque a intervenção legal e/ou interpretativa jurídica também já vem com uma grande cota de contaminação.

O pessoal que dirige o futebol poderia fazer um curso com os agricultores, quem sabe teríamos de volta os resultados de um tempo em que a água que o regava e os adubos que o fortaleciam não eram contaminados.

A SAF, embora traga um pingo de esperança, também nasceu deixando espaço para as mesmas contaminações.

O tempo brevemente vai responder a minha dúvida.

Eu continuo o trabalho com base naquilo que acredito!
Desistir jamais!

Foto: Divulgação

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