
“Costumo dizer que é impossível falar de ideia de jogo antes do sentimento pelo jogo e das emoções que as moldaram” Luís Spadetto
Natural do interior do Espírito Santo, Luís Spadetto, hoje com 36 anos, construiu sua relação com o futebol desde muito cedo — entre o futsal, os campos de terra batida e a organização de torneios de rua em sua cidade. Ainda na infância, demonstrava um interesse que ia além do jogo: montava equipes, pensava em formações e assumia, com naturalidade, o papel de treinador. Ali se formavam as bases de uma trajetória marcada por liderança entusiasmante, leitura de jogo e sensibilidade no trato com as pessoas.
Licenciado pela UEFA, com formação realizada em Portugal e Itália, Luís também obteve a licença “A” de futsal — não por acaso, mas por convicção. “Cresci no futsal, e falar do futebol brasileiro é, inevitavelmente, falar do jogo de rua e do futsal”, destaca. Para ele, essa base influencia diretamente sua leitura de jogo e suas escolhas metodológicas. Seu envolvimento com o estudo do jogo o levou, inclusive, a ser convidado para ministrar aulas na CBF Academy, onde também iniciou sua formação nacional e pretende concluir todas as licenças. “Gostei muito da licença, e o trabalho do professor Edson Palomares é excelente”, afirma. Luís acredita que o investimento na qualificação dos profissionais e a troca de conhecimento são fundamentais para que o Brasil volte a vencer — e a convencer — no cenário internacional.
Ex-jogador profissional, atuou por sete anos em Portugal, país que o acolheu aos 17 anos. Encerrada a carreira em campo aos 26, devido a lesões, iniciou uma trajetória precoce como treinador. Ainda jovem, já demonstrava maturidade para liderar grupos e desenvolver ideias próprias. Mesmo com pouca idade, sempre deixou bons trabalhos no Brasil, como no SC Internacional, onde teve uma passagem marcante nas categorias de base. A cada novo desafio, buscou construir ambientes de alto rendimento, conectando a organização europeia com a criatividade do futebol brasileiro.
Em uma dessas passagens, já com 27 anos e treinando no Brasil, protagonizou um episódio simbólico do seu perfil como formador. Ao conversar com um atleta de apenas 20 anos, recém-subido ao profissional, disse com convicção: “Confia em mim, você vai jogar a Liga dos Campeões um dia.” Quase dois anos depois, esse mesmo jogador (Neto Borges) — hoje atuando pelo Middlesbrough, da Inglaterra — estrearia na competição continental. Para Spadetto, mais do que prever o futuro, trata-se de acreditar no potencial das pessoas e saber comunicar isso com verdade. É assistente técnico do Al Ain Sub-23, o maior clube dos Emirados Árabes Unidos, onde participa ativamente de um ciclo vitorioso: cinco títulos conquistados em três anos, com contribuições diretas no desenvolvimento técnico, tático e coletivo das equipes. Mais do que os resultados, destaca-se por sua atuação no crescimento individual dos atletas e pela capacidade de adaptar conceitos ao contexto local. “O que mais me surpreendeu aqui foi a ambição do clube. O Al Ain tem uma estrutura sólida, profissionais qualificados e segue buscando evolução com planejamento. Sou grato pela oportunidade de fazer parte desse gigante árabe”, afirma.
Fluente em quatro idiomas e com formações complementares em Psicologia do Esporte e Administração, Spadetto acredita na aprendizagem contínua como pilar da carreira. Sonha em retornar ao Brasil para atuar em alto nível, contribuindo com o desenvolvimento de atletas e ideias dentro de um novo ciclo para o futebol nacional.
Fora de campo, mantém viva sua ligação com a simplicidade da vida rural — gosta de cavalos, leitura e longas caminhadas. “O povo brasileiro é especial”, diz. “E é por isso que sigo estudando, aprendendo e me preparando para poder dar minha contribuição quando a oportunidade chegar.”
Nesta matéria, revisitamos os principais capítulos de uma trajetória que cruza continentes, mistura culturas e revela como um treinador brasileiro vem construindo, com consistência, personalidade e identidade, seu caminho no futebol moderno.
Confira o bate papo na versão em inglês:
Tactics, Soul, and Human Development: The Journey of Luís Spadetto
Indo para a quarta temporada nos Emirados Árabes: Aprendizados, Desafios e Evolução no Futebol do Oriente Médio

Como foi o seu processo de adaptação cultural e profissional ao chegar nos Emirados Árabes?
Minha adaptação nos Emirados Árabes foi bastante natural. No Brasil, tive a oportunidade de viver e trabalhar em diversos estados, convivendo com culturas e realidades diferentes. Isso me ensinou a respeitar e aprender com as diferenças. Aqui, mesmo com o novo idioma e costumes, encontrei um ambiente acolhedor, profissionais de alto nível e um povo que valoriza o respeito e a convivência. Tudo isso tornou minha transição muito positiva.
Quais foram os principais desafios que você enfrentou no dia a dia do futebol nos Emirados, tanto dentro quanto fora de campo?
O maior desafio foi me adaptar ao novo papel como auxiliar técnico, vindo de um contexto no Brasil onde atuava como treinador principal e era reconhecido pelo meu estilo mais intenso, muito presente no dia a dia do clube. Sempre tive liberdade aqui para criar, contribuir e me expressar, mas no início foi um exercício de equilíbrio — de “acalmar” o ritmo e entender meu espaço dentro de uma nova estrutura. Fora de campo, o desafio foi mais emocional: me desligar daquela rotina de viver o clube 24 horas por dia. Com o tempo, aprendi a canalizar essa energia de forma mais estratégica, sempre com o foco em somar ao projeto.
O que mais te surpreendeu positivamente na estrutura e no desenvolvimento do futebol no Oriente Médio?
O que mais me surpreendeu foi a ambição do Al Ain FC. É um clube que, apesar de já ter uma história importante e uma estrutura sólida, continua buscando crescer. Existe uma mentalidade clara de evolução, com investimentos consistentes, organização e uma visão voltada para o futuro. Como em qualquer lugar do mundo, há sempre o que melhorar — e vejo o Al Ain comprometido com esse processo. Sou grato pela oportunidade de estar inserido nesse projeto dentro de um gigante árabe.
Como você enxerga a convivência diária em um staff estrangeiro, com diferentes culturas, ideias e formas de ver o jogo?
Trabalho em um staff totalmente italiano, e posso dizer com tranquilidade que conquistamos nosso espaço aqui com muito esforço e luta. Nada foi dado — construímos credibilidade no dia a dia, com trabalho sério, respeito mútuo e entrega total ao projeto. Temos culturas e visões diferentes, mas desde que haja respeito, tudo se torna possível — e até enriquecedor.
Nosso treinador e diretor da academia é Matteo Lombardo, e trabalhamos juntos com Claudio Di Marco, também assistente técnico, Roberto Cianfarani, treinador de goleiros, e Francesco Negro, preparador físico. Somos cinco nesse núcleo técnico mais próximo, e apesar das diferenças culturais, o objetivo comum sempre foi claro: vencer, desenvolver atletas e evoluir como equipe. Quando há entrega, verdade e respeito pelo jogo, as ideias se unem — e o trabalho cresce.
Quais foram os maiores aprendizados que você leva desses três anos trabalhando nos Emirados Árabes?
Aprendi que o futebol é muito maior do que imaginava. Trabalhar aqui ampliou minha visão sobre o jogo e me fez enxergá-lo como um fenômeno global, em constante transformação. É um esporte gigante, mas que ainda cresce como uma criança em muitos aspectos. Evoluí como treinador, mas principalmente como ser humano, aprendendo com outras formas de pensar e viver o futebol.
De que forma essa experiência internacional impactou sua forma de enxergar o futebol?
Essa experiência mudou completamente minha forma de ver o jogo. Hoje, enxergo o futebol de maneira mais ampla, mais estratégica e também mais humana. Aprendi a escutar melhor, adaptar minhas ideias ao contexto e valorizar o papel do treinador como educador. Nos Emirados, aprendi que o futebol é também um elo entre culturas — e que, com respeito, fé e propósito, é possível construir algo grandioso.
Longe de Casa Desde os 11 Anos: A Jornada de Maturidade e Aprendizado nos Grandes Clubes do Futebol de Base

Como foi sua trajetória como jogador e de que forma as experiências nas categorias de base influenciaram sua escolha pela carreira de treinador?
Passei pelas categorias de base de grandes clubes do Brasil, como Atlético Mineiro, Botafogo e SC Internacional. Foram anos importantes, onde aprendi muito sobre o jogo e vivi o dia a dia do alto rendimento desde jovem. Me profissionalizei com 16 anos, e fui vendido para Europa com 17. Mais tarde, atuei profissionalmente por sete anos em Portugal, até que, por conta de lesões recorrentes, precisei encerrar minha carreira aos 26 anos. Total quase 10 anos como jogador profissional Foi difícil aceitar, mas esse momento também abriu espaço para uma nova fase. Comecei a estudar, a observar o futebol por outro ângulo e percebi que queria seguir no jogo — agora como treinador. Foi uma transição precoce, mas natural, e que me fez crescer muito.
Qual foi a importância das raízes familiares na trajetória de Spadetto dentro do futebol?
O futebol sempre foi parte da rotina da minha família. Meu pai era apaixonado pelo jogo — se deixasse, via quatro partidas por dia na TV e dormia ouvindo futebol no rádio. Acho que tudo isso entrou no meu subconsciente. Ele me transmitiu essa paixão e, acima de tudo, me ensinou a respeitar o jogador. Já meu irmão foi quem me mostrou o valor de estar próximo dos atletas, sendo amigo — não o melhor amigo, mas alguém presente, confiável, que sabe o momento certo de apoiar ou de cobrar. Esses exemplos me moldaram e seguem comigo até hoje, dentro e fora de campo.
Como as experiências vividas nas ruas, quadras e em casa refletem na maneira como Luís Spadetto treina e se comunica com seus jogadores? Tudo isso influencia diretamente meu trabalho. O futebol de rua e o futsal me ensinaram a valorizar a criatividade, os duelos, a decisão rápida. A rua te forma sem que você perceba. Ao mesmo tempo, o ambiente familiar me trouxe valores como respeito, escuta e paixão verdadeira pelo jogo. Hoje, tento criar um ambiente de treino intenso, mas humano. Gosto de estar próximo dos atletas, entender seus momentos e me comunicar com clareza e verdade. Acredito que quando o jogador sente confiança e liberdade, ele tem mais condições de evoluir — como atleta e como pessoa.
Como foi lidar com a distância da família tão jovem, ainda com 11 anos, e o que isso te ensinou como ser humano e profissional?
Foi duro. Sair de casa com 11 anos não é fácil. Sofri bastante, mas eu sabia o que queria, e isso fez diferença. Quando você tem um objetivo claro, isso te impulsiona — mas também tem suas desvantagens. A gente carrega marcas, cicatrizes que só entende mais tarde. Ao mesmo tempo, tudo isso me deixou muito forte mentalmente. Aprendi a lidar com pressão, responsabilidade e solidão. Isso me formou como pessoa antes de qualquer diploma ou título.
O que você observa hoje nas categorias de base que mais mudou em relação à sua época como atleta?
Não gosto de julgar o que se faz hoje. Tudo muda — e tem que mudar, de preferência pra melhor. Mas, olhando para trás, naquela época o acesso era mais difícil. Você precisava provar seu valor todos os dias, porque toda semana chegavam garotos novos para te substituir. Era muita competição, e isso te deixava em alerta o tempo todo. Aquilo nos moldava como competidores natos, porque não dava pra relaxar. Você crescia com isso.
De que forma sua vivência como jogador influencia sua sensibilidade ao lidar com jovens atletas em formação?
Dentro de mim, ainda sou jogador. No coração, essa chama nunca apagou — mas minha mente já é totalmente voltada para o treinador, para o processo, para o desenvolvimento dos atletas e da equipe. Tenho um carinho enorme pelos jogadores, porque sei exatamente o que eles vivem. Já estive ali. Tento sempre ajudar, orientar, sem deixar de ser exigente. Gosto de estar próximo, de conversar, de entender o momento de cada um. Sou amigo, mas não o melhor amigo. Acredito que o treinador precisa ter esse equilíbrio entre confiança e cobrança, e a minha vivência como atleta me deu essa sensibilidade.
CBF Academy e Futebol Brasileiro

Quais foram os principais aprendizados que você leva do seu primeiro curso na CBF Academy?
Estar na minha primeira formação oficial no meu país foi motivo de orgulho e emoção. Mesmo estando de férias, depois de uma temporada exigente e de um título importante, fiz questão de passar 10 dias em São Paulo para viver essa experiência. Voltei com a bagagem cheia — especialmente no que diz respeito à organização e gestão de processos, um tema muito reforçado ao longo do curso. Além do conteúdo, o ambiente foi inspirador: conhecer profissionais comprometidos, que compartilham a mesma paixão pelo futebol, foi algo muito marcante para mim.
Como você avalia a troca de experiências entre os profissionais brasileiros durante o curso?
Foi uma das partes mais gratificantes. Ali encontrei gente entusiasmada, com sede de aprender e vencer, características muito próprias do nosso povo. A troca foi rica, verdadeira, e me senti renovado ao ver como há profissionais brasileiros de qualidade, dispostos a compartilhar ideias e construir juntos. Fiz muitos contatos e, sem dúvida, pretendo manter esse vínculo com todos — porque essas conexões têm valor técnico, humano e futuro.
De que forma os conteúdos da CBF Academy complementam sua formação internacional como treinador?
A formação internacional me trouxe uma base sólida, mas estar na CBF Academy me reconectou com a alma do futebol brasileiro. Os conteúdos que vivenciei no curso não só complementam minha trajetória, como também resgatam elementos da nossa identidade — com metodologia, ciência e aplicação prática. Fiquei muito satisfeito com a seriedade do curso e já me programei para seguir com as próximas licenças ainda este ano. Tenho certeza de que esse caminho será essencial para meu crescimento como profissional.
Como você vê o papel da CBF Academy na formação dos treinadores?
Sem sombra de dúvidas, a casa do treinador brasileiro é a CBF Academy. Não há o que discutir. Tenho mais de 10 anos de Europa e aprendi muito por lá. Mas sendo honesto, ao fazer o curso na CBF, vi muito conteúdo de qualidade. O que mais admiro nos treinadores brasileiros é a liderança natural — e isso não se compra, está no nosso DNA. A CBF Academy vem para organizar essa paixão que temos pelo jogo. Disso se trata: organizar a paixão.
O que falta para o treinador brasileiro voltar a ser referência no mundo?
O que falta, sinceramente, eu não sei dizer com exatidão — porque eu sou um treinador brasileiro. Mas acredito que, se começarmos a falar outros idiomas e nossas licenças passarem a ter validade internacional, talvez o cenário mude também. O treinador brasileiro é apaixonado, líder e corajoso. E para ser treinador no Brasil, é preciso ter coragem — isso os próprios treinadores argentinos dizem quando vêm trabalhar aqui. Tenho convicção de que a nova geração de treinadores brasileiros vai mudar essa história. E vai voltar a colocar o Brasil em evidência. Pode anotar! O mundial mostrou um pouco do que somos.
O que pode impulsionar a evolução dos treinadores brasileiros na prática?
Olha, muitos treinadores europeus que chegam ao Brasil falam a mesma coisa: “no Brasil não se treina”. E eu entendo o que querem dizer. Porque, de fato, como evoluir algo que não se pratica com constância? Mas mesmo dentro dessa realidade, o treinador brasileiro se adapta — e nisso ele é muito forte em liderança e estratégia. Por quê? Porque, sem tempo para treinar o modelo de jogo, ele pratica gestão, comunicação, leitura de cenário, tomada de decisão sob pressão. O jogo ensina — e o treinador brasileiro, dentro do caos, ainda encontra soluções. Isso é uma virtude enorme.
Por que ainda se cobra tanto do treinador brasileiro sem considerar o contexto em que ele trabalha?
Vamos falar de cultura. O brasileiro é criativo, apaixonado, comunicador e, acima de tudo, corajoso. Isso está no nosso povo — e também no nosso treinador. Então, por que ainda se insiste em criticar o treinador brasileiro sem olhar o contexto em que ele atua? Aqui, se perde dois ou três jogos, já se fala em demissão. Isso criou um ambiente de desencorajamento, onde o treinador vive mais preocupado em se proteger do que em propor. A consequência disso é clara: poucos, como o Diniz, tentam ir contra o sistema. A maioria foi moldada para sobreviver — e não para ousar. Mas se olharmos para fora com honestidade, vamos ver que até treinadores consagrados como Jorge Jesus passaram por um caminho muito mais longo. Ele treinou equipes pequenas por muitos anos em Portugal, chegou a ser rebaixado, e só depois teve estabilidade para desenvolver seu modelo. E, com certeza, ele teve muito mais tempo de treino e de aplicação de ideias do que qualquer treinador brasileiro tem hoje — e não apenas por estar mais tempo na profissão, mas pelo contexto em que trabalhou. Então, antes de criticar, é preciso olhar o sistema.
Que conselho você daria aos jovens treinadores brasileiros em início de carreira?
Conselho? Não tenho que dar conselho algum. Não sou ninguém para isso. O que posso dizer, com respeito e sinceridade, é que daqui a pouco o Brasil vai voltar a vencer com a nossa seleção, e os treinadores brasileiros vão voltar a ter espaço e oportunidades maiores pelo mundo afora. Mas quando esse momento chegar, é preciso estar preparado: com licenças atualizadas, com estudo e, principalmente, com idiomas. Porque saber futebol é importante, mas saber se comunicar em diferentes contextos é o que vai abrir portas e sustentar esse novo ciclo.
Falando de Jogo — Perguntas táticas para Luís Spadetto
Luís, e qual é a sua ideia de jogo?
Costumo dizer que é impossível falar de ideia de jogo antes do sentimento pelo jogo e das emoções que as moldaram. Tudo começa aí: no que você sente pelo futebol. Sou intenso por natureza e busco que meus jogadores também o sejam. Gosto de ter a bola — mas para atacar. Gosto de pressionar alto — também para atacar. Gosto da agressividade: mostrar com toda a tua força que você quer vencer. O adversário precisa sentir que temos um sentimento mais forte que o deles. Não é a ideia que vence, é o sentimento. Meu primo tem ideias — é super inteligente, sabe até o nome do presidente do Japão de cor — mas nunca coloca em prática, porque lhe falta intensidade. Então sim, ideias e intenções você pode ter muitas. Mas o que dita tudo é sua paixão, sentimento, emoção, agressividade em querer vencer. Eu quero tudo do jogo. A bola. O tempo. O ritmo. O espaço. Os duelos físicos e emocionais.Tudo. Vencer. O jogo se trata disso: vencer. A qualquer custo — mas não de qualquer maneira. Quando comecei a estudar futebol para ser treinador, eu tive que voltar ao meu passado. Sempre busquei criar uma ideia de jogo autêntica, genuína, moldada por aquilo que eu sinto. Fui realmente refletir sobre minha infância, o que me movia. E foi ali que percebi que minha maneira de ver o jogo nasce de um lugar profundo, de algo vivido — não apenas aprendido.
Como você enxerga a evolução do jogo posicional nos últimos anos?
Mais do que uma evolução puramente posicional, eu enxergo uma evolução no processo decisional do jogador. Se concordamos que futebol é tempo e espaço, então no meio disso tudo está o ritmo. Para mim, entender os ritmos do jogo é o que realmente permite ao jogador tomar boas decisões — com bola ou sem bola. O ritmo dita tudo: quando acelerar, quando segurar, quando ocupar ou liberar espaços. É aí que está a verdadeira sofisticação do jogo moderno. Acredito eu.
Na sua visão, qual o papel das relações entre setores no sucesso de um modelo de jogo bem executado? A conexão entre linhas ainda é subestimada no futebol moderno?
Na minha visão, mais do que simplesmente falar em conexão entre linhas ou setores, é preciso entender que isso é muito mais profundo do que parece. Ouve-se muito falar em “compactação”, mas estar compacto é diferente de saber jogar de forma compacta. E essa diferença está justamente na qualidade das conexões. Encontrar a conexão ideal entre os jogadores e setores talvez seja um dos maiores desafios dentro de um modelo de jogo. Acredito que, por meio de estímulos bem pensados, com variações de contexto e intensidade, é possível ajudar a equipe a desenvolver esse tipo de leitura e sintonia coletiva.
O que, para você, define uma equipe bem organizada defensivamente? É mais uma questão de bloco, de comportamentos, ou de entendimento coletivo dos momentos do jogo?
Para mim, uma equipe bem organizada defensivamente começa com o entendimento claro do treinador e a disciplina e entrega dos jogadores. É preciso querer defender. Isso exige paixão, e sim, isso também faz parte daquela conexão que vai além da simples compactação. Compactar é uma coisa — defender conectado é outra, mais profunda. Envolve leitura coletiva, esforço coordenado e intenção. E o coração do treinador também conta nisso. Se ele valoriza o ato de defender, transmite isso com verdade, e os jogadores passam a sentir o mesmo. A organização vem daí: da clareza, da conexão e da vontade conjunta de proteger o jogo.
Como você interpreta a importância dos duelos individuais dentro de um jogo cada vez mais coletivo e posicional? O 1×1 ainda é decisivo?
O jogo é 1×1. O futebol é feito de duelos — físicos, técnicos, mentais. E muitas vezes, antes de tudo, o duelo é 1×0: você contra você mesmo. Porque mesmo quando se está sozinho, pode-se errar pela decisão equivocada. Os grandes jogadores da história foram grandes porque tomaram boas decisões nas zonas onde a bola estava, sob pressão e com pouco tempo. Mas o detalhe é que, antes da bola chegar, eles já estavam tomando decisões. O jogo coletivo depende disso: de indivíduos com capacidade de vencer seus duelos — inclusive os internos.
O futebol atual exige cada vez mais leitura e adaptação durante o jogo. Como você vê a autonomia do jogador nesse contexto? É possível formar atletas mais táticos sem limitar sua criatividade?
Quando falamos em tática, estamos falando de tudo — não dá para reduzir a tática a algo engessado. Tática é um combo, uma junção de princípios, conceitos, comportamentos e interações que fazem o jogo funcionar. A leitura do jogador é fundamental nesse processo, e muitas vezes eles entregam mais do que você pediu — desde que saibam o que estão procurando. Por isso, o mais importante é saber o que pedir e como pedir. Gosto de dar nome às coisas dentro da tática, porque isso facilita o entendimento, cria uma linguagem comum e ajuda o jogador a tomar decisões com mais clareza dentro do modelo de jogo. Autonomia se constrói com clareza, não com improviso solto.
Na sua observação, quais são os elementos mais difíceis de se consolidar em um modelo de jogo: os comportamentos com bola, sem bola, ou os momentos de transição? Por quê?
Para mim, o mais difícil de consolidar é o aspecto humano. Incutir valores humanos dentro de um grupo é mais desafiador — e mais importante — do que qualquer conteúdo técnico ou tático. Porque se você olhar com profundidade, vai perceber que os comportamentos com ou sem bola dependem diretamente da disciplina, do respeito e do compromisso coletivo. E isso não se impõe por comando, mas se constrói com base em princípios claros e uma ideia matriz que dá sentido ao todo. Quando o jogador respeita a equipe, o processo e os porquês, ele executa com mais verdade. A tática funciona melhor quando é sustentada por convicções humanas.
Qual é a sua visão sobre o papel da preparação física e das estatísticas no futebol moderno? Até que ponto esses elementos devem influenciar as decisões dentro do modelo de jogo?
A parte física é uma componente que compõe o futebol. Resumindo: ela existe, é importante — mas mais importante do que ela existir, é como ela existe dentro do modelo do treinador. O jogador precisa saber correr dentro da ideia de jogo, nem pouco, nem muito — mas com qualidade e intenção.
Sobre as estatísticas, também entendo que são fatos, mas é preciso cuidado: tudo depende da interpretação. Os números são ferramentas, não verdades absolutas. É algo sutil: ou você sabe ler os dados dentro do contexto, ou vai se perder neles. Para mim, tanto a parte física quanto os números têm valor — desde que sirvam ao jogo, e não ditem o jogo.
Organizando a Paixão: A CBF Academy e o Futuro do Treinador brasileiro
Quais foram os principais aprendizados que você leva do seu primeiro curso na CBF Academy?
Estar na minha primeira formação oficial no meu país foi motivo de orgulho e emoção. Mesmo estando de férias, depois de uma temporada exigente e de um título importante, fiz questão de passar 10 dias em São Paulo para viver essa experiência. Voltei com a bagagem cheia — especialmente no que diz respeito à organização e gestão de processos, um tema muito reforçado ao longo do curso. Além do conteúdo, o ambiente foi inspirador: conhecer profissionais comprometidos, que compartilham a mesma paixão pelo futebol, foi algo muito marcante para mim.
Como disse em outros momentos: “Sempre quis ser treinador. O que mais me motiva é ajudar um jogador a descobrir que ele pode ir além do que imagina.”
Como você avalia a troca de experiências entre os profissionais brasileiros durante o curso?
Foi uma das partes mais gratificantes. Ali encontrei gente entusiasmada, com sede de aprender e vencer, características muito próprias do nosso povo. A troca foi rica, verdadeira, e me senti renovado ao ver como há profissionais brasileiros de qualidade, dispostos a compartilhar ideias e construir juntos. Fiz muitos contatos e, sem dúvida, pretendo manter esse vínculo com todos — porque essas conexões têm valor técnico, humano e futuro.
De que forma os conteúdos da CBF Academy complementam sua formação internacional como treinador?
A formação internacional me trouxe uma base sólida, mas estar na CBF Academy me reconectou com a alma do futebol brasileiro. Os conteúdos que vivenciei no curso não só complementam minha trajetória, como também resgatam elementos da nossa identidade — com metodologia, ciência e aplicação prática.
Como costumo dizer: “Levo comigo a essência do jogo brasileiro — essa criatividade, improviso e sensibilidade que vêm do futsal e do futebol de rua. A Europa me ajudou a estruturar essas ideias, a dar lógica ao que antes era mais intuitivo.”
O curso foi sério, intenso, e já me programei para seguir com as próximas licenças ainda este ano. Tenho certeza de que esse caminho será essencial para meu crescimento como profissional.
Como você vê o papel da CBF Academy na formação dos treinadores?
Sem sombra de dúvidas, a casa do treinador brasileiro é a CBF Academy. Não há o que discutir. Tenho mais de 10 anos de Europa e aprendi muito por lá. Mas sendo honesto, ao fazer o curso na CBF, vi muito conteúdo de qualidade. O que mais admiro nos treinadores brasileiros é a liderança natural — e isso não se compra, está no nosso DNA. A CBF Academy vem para organizar essa paixão que temos pelo jogo. Disso se trata: organizar a paixão.
O que falta para o treinador brasileiro voltar a ser referência no mundo?
O que falta, sinceramente, eu não sei dizer com exatidão — porque eu sou um treinador brasileiro. Mas acredito que, se começarmos a falar outros idiomas e nossas licenças passarem a ter validade internacional, talvez o cenário mude também. O treinador brasileiro é apaixonado, líder e corajoso. E para ser treinador no Brasil, é preciso ter coragem — isso os próprios treinadores argentinos dizem quando vêm trabalhar aqui. Tenho convicção de que a nova geração de treinadores brasileiros vai mudar essa história. Vai voltar a colocar o Brasil em evidência. Pode anotar. A última Copa do Mundo mostrou um pouco do que somos.
O que pode impulsionar a evolução dos treinadores brasileiros na prática?
Olha, muitos treinadores europeus que chegam ao Brasil falam a mesma coisa: “no Brasil não se treina”. E eu entendo o que querem dizer. Porque, de fato, como evoluir algo que não se pratica com constância? Mas mesmo dentro dessa realidade, o treinador brasileiro se adapta — e nisso ele é muito forte em liderança e estratégia. Por quê? Porque, sem tempo para treinar o modelo de jogo, ele pratica gestão, comunicação, leitura de cenário, tomada de decisão sob pressão. O jogo ensina — e o treinador brasileiro, dentro do caos, ainda encontra soluções. Isso é uma virtude enorme.
“O que mais admiro nos treinadores brasileiros é a liderança e a gestão de grupo. O nosso povo é talentoso, especial. Isso se reflete no campo.”
Por que ainda se cobra tanto do treinador brasileiro sem considerar o contexto em que ele trabalha?
Vamos falar de cultura. O brasileiro é criativo, apaixonado, comunicador e, acima de tudo, corajoso. Isso está no nosso povo — e também no nosso treinador. Então, por que ainda se insiste em criticar o treinador brasileiro sem olhar o contexto em que ele atua? Aqui, se perde dois ou três jogos, já se fala em demissão. Isso criou um ambiente de desencorajamento, onde o treinador vive mais preocupado em se proteger do que em propor.
Poucos, como o Diniz, buscam ir na contramão disso. A maioria foi moldada para sobreviver — e não para ousar.
Se olharmos para fora com honestidade, vamos ver que até treinadores consagrados como Jorge Jesus passaram por um caminho muito mais longo. Ele treinou equipes pequenas por muitos anos em Portugal, chegou a ser rebaixado, e só depois teve estabilidade para desenvolver seu modelo. E com certeza, teve muito mais tempo de treino e aplicação de ideias do que qualquer treinador brasileiro tem hoje — não apenas pelo tempo de carreira, mas pelo sistema em que estava inserido.
Que conselho você daria aos jovens treinadores brasileiros em início de carreira?
Conselho? Não tenho que dar conselho algum. Não sou ninguém para isso. O que posso dizer, com respeito e sinceridade, é que daqui a pouco o Brasil vai voltar a vencer com a nossa seleção, e os treinadores brasileiros vão voltar a ter espaço e oportunidades maiores pelo mundo afora.
Mas quando esse momento chegar, é preciso estar preparado: com licenças atualizadas, estudo constante e, principalmente, com idiomas. Porque saber futebol é importante, mas saber se comunicar em diferentes contextos é o que vai abrir portas e sustentar esse novo ciclo.
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